
“I am lost in a rainbow… and our love's gone.”
A música In This Shirt, do The Irrepressibles, traduz como poucas obras o estado emocional de quem está no meio de um divórcio. É como se a pessoa ainda vestisse uma camisa impregnada de lembranças, sem saber exatamente como ou quando tirá-la. E, no entanto, a vida exige movimento.
No Direito brasileiro, casamento é, antes de tudo, um contrato especial de direito de família. Ele estabelece deveres, regimes patrimoniais, efeitos jurídicos. E, como todo contrato, pode ser encerrado — mesmo sem culpa ou consenso, desde a Emenda Constitucional 66/2010. O divórcio é um direito potestativo: basta a vontade de uma das partes.
Mas o fato de ser um contrato não o torna menos doloroso. É aqui que entra o papel do advogado. Não como guerreiro — mas como pacificador e conselheiro jurídico.
Nos últimos anos, tenho atendido homens e mulheres no processo de ruptura conjugal. E se há algo em comum entre eles é o luto: o luto de quem não perdeu uma pessoa, mas uma versão de si mesmo. O projeto de futuro, o cheiro no travesseiro, o nome no grupo da família.
Nessas horas, o profissional do Direito precisa ter mais do que técnica. Precisa ter escuta. Precisa saber a hora de propor um bom acordo, de evitar um litígio desnecessário, de proteger o patrimônio e, mais ainda, preservar a saúde emocional dos envolvidos — especialmente quando há filhos.
É nesse contexto que entra um conceito muitas vezes ignorado: a economia afetiva.
Como argumenta a antropóloga Claudia Fonseca (2025), nas disputas familiares e parentais, os afetos funcionam como um verdadeiro capital simbólico — acumulado, trocado e distribuído de forma desigual conforme classe, gênero e contexto social. Sua análise das chamadas “economias afetivas” revela uma correlação direta entre a posição social dos envolvidos e o desgaste emocional exigido para que consigam legitimar sua parentalidade diante das instituições e da sociedade. Litígios prolongados, nesse cenário, não apenas drenam recursos financeiros, mas alimentam uma economia desigual de ansiedade, frustração e vigilância moral.
Por isso, compreender a economia afetiva é também reconhecer a importância de saber onde gastar — ou poupar — sua energia emocional. Litígios longos corroem vínculos futuros, prejudicam a parentalidade e alimentam mágoas que poderiam ser evitadas. Um bom acordo pode não curar a dor, mas impede que ela infeccione
Por isso, em muitos casos, oriento meus clientes a também procurarem ajuda psicológica. O trabalho do advogado não substitui o do terapeuta. A função de cada um é distinta, mas complementar: enquanto um organiza juridicamente a transição, o outro ajuda a elaborar emocionalmente a perda.
Ao contrário do que muitos pensam, não é fraqueza buscar ajuda — é maturidade emocional e inteligência prática. E a atuação jurídica moderna precisa estar alinhada com esse entendimento.
No final das contas, quando um casamento termina, o que está em jogo não é só a divisão de bens ou o cálculo da pensão. Está em jogo a dignidade de cada parte. O desafio é permitir que cada um possa tirar essa “camisa” do passado, dobrá-la com respeito, e então seguir em frente — com menos mágoa, mais clareza, e espaço para novos começos.
Ao incorporar o conceito de “economia afetiva” ao campo jurídico, reconhecemos que a atuação do advogado não se resume a cláusulas e protocolos. Envolve, sobretudo, compreender que emoções também são ativos — e que, como demonstrado por Fonseca (2025), sua circulação está profundamente enredada em estruturas de poder. O bom profissional do direito não ignora esse dado: ele o considera parte da equação.
Se casamento é contrato, o divórcio não precisa ser guerra. E o bom advogado é aquele que orquestra a saída com serenidade, não o que toca fogo no que já está sensível demais.
Fonte:
FONSECA, Claudia. Contested parenting and its affective economies: a commentary. Ethos, v. 53, n. 1, e70009, 2025. DOI: https://doi.org/10.1111/etho.70009.
THE IRREPRESSIBLES. In This Shirt. [S.l.]: Vicious Records, 2010. 1 faixa sonora (4 min 8 s). Disponível em: https://open.spotify.com/track/6cK3L4z1Yk0wY2kAQUg3y5. Acesso em: 3 maio 2025.